Ligatura
I.
Nem os olhos roxos conseguiam retirar o sorriso simpático, enquanto ela oferecia seus biscoitinhos para toda a delegacia.
O delegado chamou-a em sua sala.
- Dona Nina, conte novamente seu incidente, por favor.
II.
- Pois bem. Dos maridos que tive, Adolfo até foi um dos bons, mas se fosse contrariado, era em mim que descontava sua frustração.
- Sempre foi ou hoje foi a gota d'água?
- Ele era bem previsível, sabe? Mas aí...
III.
- Mas aí...?
Um brilho no olhar daquela senhora ligou o alerta na cabeça dele.
- Não admito palavrão em minha casa, senhor. Ele me chamou de puta! Enfiei minha melhor faca nas costas dele.
Dona Nina sorriu.
IV.
Ele recebeu uma mensagem no celular: "Achamos mais 'coisas' na casa da senhora."
- Aceita outro biscoitinho enquanto lhe conto minha sina de viúva?
V.
I.
Calma, Dona Nina falava com o delegado, enquanto este devorava seu biscoitinho.
- Alfredo foi meu primeiro marido. Desatento ao extremo. Passei os primeiros anos me devotando a ele.
No celular do delegado, mensagens surgiam.
II.
"Ela tem um porão! Parece o asilo de 'Jogos Mortais'. Quem mais morava com eles?"
Doce, ela falava:
- Aí, você tem uma iluminação. Ele me trocava pelos amigos e o futebol. - Que espécie de homem faz isso? Um dia, passei as roupas dele e preparei o café.
III.
- Até pão quente com manteiga fiz. Mal-humorado, não disse nem bom dia ou muito obrigado. Comeu em silêncio, o traste! Sequer sentiu o gosto do veneno de rato.
Em silêncio, o delegado olhou o biscoitinho mordido.
IV.
- Não se preocupe. O senhor parece dar a atenção necessária a uma mulher.
Disse ela sorrindo.
V.
I.
"Estou aguardando a análise de um objeto suspeito.", dizia a mensagem.
- Dona Nina, pelo que eu percebi, não houve nenhum marido que não….
- Me aborreceu? Ela sorriu.
- Ah, bem, teve o Alberto. Tocava violão e cantava para mim.
II.
- Adorava Ritchie…"Menina veneno, você tem um jeito doce de ser…"
- Outro marido com A?!
- E tem algo errado nisso, senhor?
- Não, inclusive, meu nome é Adriano.
- Mas o mundo é pequeno demais!
III.
- Aceite mais um biscoito, sim?
Ofereceu, deliciada.
- E o que houve com o Alberto?
- Oh! Meu querido Alberto faleceu.Era alguns anos mais velho do que eu. Câncer no pâncreas; não havia o que fazer! Quase fui à falência para salvá-lo.
IV.
“Confirmamos que o abajur é feito de carne humana.”, estava na mensagem.
- Mas ainda bem que salvei uma parte dele que vela meu sono todas as noites...
V.
I.
O delegado, educado, falava:
- A escrivã foi fazer um café. Aceita?
-Por que não?
Dona Nina sorriu.
-Aquino, meu outro marido, bebia muito, para curar as ressacas. Eu perdoava o alcoolismo. Não satisfeito, ele me traiu com uma sirigaita qualquer.
II.
- Por causa dele, quase fiz algo que me arrependi. Com o encanador. Um rapaz bonito. E eu era mais jovem.
- Ele me beijava perto da pia. Me fazia sentir coisas, sensações. Quando eu lembrei que era casada, acertei a cabeça dele com a chave de grifo.
III.
- Aquino chegou bêbado e cheirando perfume barato. 'Estava cuidando de minhas coisas, megera!', ele disse.
- A culpa foi dele. Quase virei uma adúltera. Por isso, acertei-o com a mesma chave de grifo.
IV.
- Os dois adubam meu jardim até hoje.
No celular, surgiu a mensagem:
"Há dois esqueletos no jardim."
V.
I.
Os biscoitinhos tinham acabado. Dona Nina parecia uma avó contemplando seu neto. O delegado estava empanturrado. Tentou se justificar:
- Parei de fumar há pouco tempo, então, estou substituindo o cigarro pelo doce. Mas estavam realmente bons!
II.
- Entendo. Meu Alcides tentou muitas vezes largar esse vício também. Fez de tudo um pouco, e começou a engordar, mas não de uma forma boa. Ele comia um bolo inteiro se eu deixasse, sabe?
- E imagino que a senhora ficou escrava do fogão?
III.
- Fiquei, mas não por muito tempo. Piscou.
Sem mensagens. Bom sinal?
- Não precisei fazer muito. Ele morreu intoxicado com uma fornada de biscoitinhos, exatamente como essa.
IV.
- Usei meu ingrediente secreto... Pó de Maridos.
Gargalhou.
O delegado só teve tempo de chegar ao corredor. Outros desavisados estavam no mesmo estado.
V.
I.
Alguns meses depois...
- Sabia que viria me visitar.
Disse dona Nina, na área de visitas da Prisão.
Adriano sentou-se ao lado dela:
- Tinha de vir. Tenho uma pergunta. A senhora poderia permanecer ilesa. Por que ir à delegacia? Por que se entregar?
II.
O sorriso no rosto, a senhora disse:
- Não. Eu não me entreguei. De que adiantaria fazer o que fiz, sem contar a ninguém. Não tenho filhos e o senhor me pareceu o mais próximo a um neto.
- Peraí! Não se arrependeu?
III.
- Todos os meus maridos foram homens terríveis. Ninguém vê isso. Quem era o monstro, afinal?
- Mesmo com o que acharam em sua casa, a senhora ainda conseguirá sair por causa de sua idade.
- O advogado foi muito bom. Lembrou meu finado Astrogildo.
IV.
- A senhora teve um marido advogado?
- Se tiver tempo, posso continuar contando minha sina de viúva.